sexta-feira, 7 de março de 2014

O Que Penço? O que Vejo? O Que Sou? O Que Faço?

A Natureza da Atividade Filosófica


A Natureza da Atividade Filosófica

Maurício Vicente de Morais Filho

A atividade filosófica é sui generis. Parecemos viver muito bem sem ela. Aprendemos e ensinamos, trabalhamos, ouvimos música, vamos à praia e podemos construir nossas vidas com planos de sucesso e estabilidade financeira sem nos deixarmos envolver pelo discurso e pelos problemas filosóficos. Na verdade, os problemas filosóficos normalmente nos deixam incomodados, mal humorados, ansiosos. Isso porque, como normalmente ocorre, ao tentar resolvê-los, deparamo-nos com outros problemas que até então não havíamos considerado. A filosofia parece ser não apenas desnecessária para o bem viver; ela parece ser incompatível com a idéia de uma vida tranqüila. Somando-se a isso, devemos considerar o caráter abstrato da atividade filosófica. Por lidar com problemas distantes da vida comum, o filósofo é considerado freqüentemente uma pessoa destacada da realidade, perdido em especulações inúteis, alheio aos problemas que a vida diária se lhe impõem.

Essa visão negativa do filósofo rondou-o desde os primórdios da filosofia. Como ilustração, é interessante recorrer a uma lenda acerca de Tales, o grande matemático e filósofo grego que revolucionou a geometria, aquele que inventou o ‘Teorema de Tales’, estudado nas aulas de matemática do 2o grau. Em sua época, cerca de 580 a. C., não havia a divisão do conhecimento que há hoje, de modo que o intelectual era tanto matemático, quanto político, astrônomo, geômetra, etc. Conta a lenda que Tales certa vez passeava à noite olhando para as estrelas, com o intuito de estudar seus movimentos e regularidades. Com os olhos fixos no céu, ele não percebeu que caminhava em direção a um poço. Depois de tropeçar e cair dentro dele, uma jovem trácia que testemunhara o fato observou em tom sarcástico: "tão preocupado com os assuntos celestes que acabou esquecendo da terra que o sustenta" (cf. Platão: Teeteto, 174a). Essa lenda é utilizada para caracterizar a visão que o senso comum tem do filósofo. "Filosofia", diz o dito popular, "é aquilo sem o qual o mundo seria tal e qual". O filósofo é visto como um sonhador de sonhos inefáveis, ou ainda como uma pessoa que está sempre envolvida com assuntos que a grande maioria das pessoas não dá o menor valor.

Essa visão caricatural da filosofia não se restringe ao senso comum. Guimarães Rosa certa vez definiu o filósofo como "aquele que se encontra num quarto escuro, à procura de um gato preto que não está lá. E ele o encontra..." Fernando Pessoa, em seu famoso poema ‘Tabacaria’, escreve que "a metafísica... é uma conseqüência de se estar mal disposto..." Mas será que é assim mesmo, quer dizer, será que é tão simples descartar a filosofia como uma atividade intelectual inútil? Para obtermos uma resposta satisfatória, é necessário que especifiquemos o ofício do filósofo. Qual é a natureza do trabalho filosófico?

A leitura dos filósofos sugere que a primeira característica distintiva do filósofo é a de lidar com idéias ou conceitos e não com objetos palpáveis, como o lavrador e o ferreiro. É claro que estes últimos não dispensam (e não podem dispensar) o uso de idéias, o ferreiro recorrendo sempre à idéia ou ao modelo do martelo a ser construído e o lavrador à idéia do solo e da época de plantio. O filósofo, porém, lida com idéias que não são sempre traduzíveis em coisas concretas, tais como o conceito de ‘verdade’ ou de ‘bem’. Além disso, contrariamente ao psicólogo e ao sociólogo, por exemplo, o filósofo não está preocupado em colocar em prática as suas idéias. Isso não quer dizer que ele se recuse a fazê-lo; ele simplesmente não considera a concretização de suas idéias como fundamental para a sua atividade. Como diz Platão: "o filósofo permanece totalmente alheio ao seu vizinho mais próximo; ele é ignorante..., ele mal sabe se é um homem ou um animal; ele está investigando a essência do homem". Embora ele prefira o convívio das cidades, "sua mente, desdenhando da irrelevância e da nulidade das coisas humanas, está sobrevoando o estrangeiro" (Teeteto, pgs. 25-6).

O que há de peculiar em sua prática com conceitos, isto é, em sua prática teórica, é que ele está sempre buscando o fundamento ou a raiz dos problemas e das doutrinas analisadas. Para ilustrar esse ponto, creio ser necessário recorrer a Sócrates. Perguntado pelos chamados sábios acerca do que ele conhecia, Sócrates respondeu: "A única coisa de certa que sei é que nada sei". É claro que Sócrates sabia muito mais do que isso, mas o que ele queria dizer era que, contrariamente aos chamados sábios, ele procurava se definir em termos dos limites do seu conhecimento e não em termos da quantidade de conhecimentos adquiridos. Sócrates acreditava que a primeira atitude em direção ao conhecimento não era a certeza, mas a ignorância. Nesse contexto, a palavra ‘ignorância’ não está sendo usada no sentido pejorativo, mas sim no sentido de ‘ausência de saber’, ou ‘ausência de conhecimento’. O filósofo não é, então, nem o sábio nem o ignorante. Ele é, na verdade, aquele que busca a sabedoria, ou que procura ser amigo da sabedoria. Ele não é também o homem das respostas, mas das perguntas. Diante, por exemplo, do problema acerca da atitude justa ou não de um governante, o filósofo deve destacar que o que está em jogo é antes de tudo o conceito de justiça; somente a partir de uma idéia clara desse conceito é que se pode caracterizar a atitude do governante como justa ou não. É nesse sentido que o filósofo se diz estar preocupado não tanto com a concretização da sua idéia mas com a idéia em si, isto é, não com o ato específico do governante mas com a definição clara de justiça.

Assim, o filósofo realmente parece habitar um outro mundo, aquele que não é visto ou palpável, o mundo das pressuposições e dos fundamentos do conhecimento. Ele parece estar realmente num quarto escuro à procura de um gato preto, pois muitas vezes esse fundamento ou essa raiz não se encontra visível. Ele se deixa envolver pelos pensamentos nos sentido de procurar o ponto que originou uma discussão. Mas além dessa busca da raiz dos problemas, ou melhor, além dessa atitude radical que acabei de expor, há uma segunda característica da maneira filosófica de refletir. Suponha que eu receba a tarefa de desenhar o mapa, por exemplo, da ilha de Santa Catarina. A representação, por exemplo, da orla da praia da Joaquina, deve ser construída de acordo com a escala geral do mapa. Se, por ventura, a representação em questão não respeitar a escala, a praia da Joaquina ocupará no meu mapa uma área desproporcional em relação ao todo. O filósofo, nesse sentido, é como um geógrafo: a atitude radical deve ser acompanhada de uma visão da totalidade, i.e., de uma atitude com respeito ao todo. Sem essa segunda característica, o filósofo se torna tão descuidado como o geógrafo medíocre que não leva em conta a escala do mapa que está elaborando, ou como o botânico que pretende estudar uma determinada planta sem levar em conta o tipo de solo e o clima do ambiente em que ela nasceu.

Até agora, as minhas observações não fornecem material suficiente para uma análise da visão que aquela jovem trácia e o homem comum têm do filósofo, embora já nos dêem claras indicações da visão que o filósofo tem de si mesmo. O homem comum parece ter um forte aliado, um aliado-filósofo, dos mais influentes na história da filosofia. Eu me refiro a Karl Marx. Foi ele que, em tom bombástico, afirmou: "Os filósofos até hoje se preocuparam apenas em interpretar o mundo; trata-se, porém, de transformá-lo". Parece que Marx também vê o filósofo como distante das questões do mundo. Creio, porém, que essa análise não corresponde à intenção real de Marx. É preciso reconhecer antes de mais nada que não é possível transformar o mundo sem interpretá-lo. Qualquer ação humana concreta pressupõe uma interpretação, isto é, uma atitude reflexiva e conceitual. O próprio termo "realidade" se apresenta carregado de interpretação. É como se eu apenas tivesse acesso à ilha de Santa Catarina através do seu mapa. Quando falamos, por exemplo, da situação social do Brasil contemporâneo, o que fazemos é encaixar a experiência que temos do nosso dia a dia, bem como as informações que dispomos do que acontece no Brasil inteiro e de sua história, num modelo conceitual, numa teoria, ainda que rudimentar, a partir da qual os eventos são relacionados e catalogados entre si. Assim, nenhuma atitude transformadora se dá sem que certos pressupostos sejam assumidos, sem que determinados princípios que vão direcionar a nossa investigação e a nossa ação sejam levados em conta. Em outras palavras, a transformação do real só pode ocorrer se se interpretar o que está para ser transformado. Sem um plano pré-estabelecido, com seus pressupostos teóricos, corre-se o risco de nada transformar, ou de transformar para pior.

Dessa forma, a maneira mais adequada que encontro de analisar a frase de Marx é reconhecer que, de um lado, Marx não poderia estar dizendo que devemos simplesmente parar de interpretar e apenas transformar, pois a transformação requer interpretação; de outro lado, a interpretação sem transformação é inútil, isto é, a interpretação em termos da atitude reflexiva do filósofo deve ser sempre em última instância uma interpretação com vistas à transformação do mundo. Dito de outro modo, a filosofia deve sempre falar do mundo, desse mundo diante dos nossos olhos e que tem um passado, um presente e um futuro dos quais podemos ter experiência, tentando modificá-la e melhorá-la. Embora à primeira vista não pareça, a frase de Marx é importante para uma defesa da atividade filosófica. Ela permite-nos corrigir o homem comum, mostrando-lhe o caráter enganador da idéia de que o filósofo está "do lado de fora" do mundo. Marx está se referindo a um determinado tipo de filósofo, ou a um determinado tipo de filosofia: aquele que em nada contribui para o desenvolvimento da humanidade, que é hermético, arrogante e auto-suficiente. Esse tipo de filosofia, realmente, não é interessante. Ele se reduz a um mero exercício de diletantismo.
João Pessoa, 07 de Março de 2014.