quinta-feira, 13 de novembro de 2014

PODEMOS LER? PODEMOS VER? PODEMOS CONSTRUIR UM MUNDO NOVO?

Mas para que serve mesmo a filosofia?



A palavra «filosofia» tem conotações infelizes: coisas abstractas, remotas, esquisitas. Tenho a impressão de que todos os filósofos e estudantes de filosofia passam por aquele momento de embaraço silencioso quando alguém nos pergunta inocentemente o que fazemos. Eu preferiria apresentar-me como engenheiro conceptual. Pois, tal como um engenheiro estuda a estrutura das coisas materiais, o filósofo estuda a estrutura do pensamento. Para compreender a estrutura é necessário ver como as partes funcionam e como se conectam entre si, o que significa saber o que aconteceria de melhor ou pior se fizéssemos algumas mudanças. É este o nosso objectivo quando investigamos a estrutura que dá forma à nossa visão do mundo. Os nossos conceitos e ideias constituem o lar mental em que vivemos. No fim, talvez tenhamos orgulho nas estruturas que construímos. Ou talvez pensemos que esses conceitos precisam de ser desmantelados e que temos de começar a partir do zero. Mas primeiro, temos de saber o que são estes conceitos.

Simon Blackburne, Pense, ma Introdução à Filosofia

O que é a filosofia? Por Maurício Filho



O que é a Filosofia? Esta é uma questão notoriamente difícil. Uma das formas mais fáceis de responder e dizer que a Filosofia é aquilo que os filósofos fazem, indicando de seguida os textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Russell, Wittgenstein, Sartre e de outros filósofos famosos. Contudo, é improvável que esta resposta possa ser realmente útil se o leitor está a começar agora o seu estudo da Filosofia, uma vez que, nesse caso, não terá provavelmente lido nada desses autores. Mas, mesmo que já tenha lido alguma coisa, pode, ainda assim, ser difícil dizer o que tem em comum, se é que existe realmente uma característica relevante partilhada por todos. Outra forma de abordar a questão e indicar que a palavra filosofia deriva da palavra grega que significa amor da sabedoria.
Contudo, isto é muito vago e ainda nos ajuda menos do que dizer apenas que a Filosofia e aquilo que os filósofos fazem. Precisamos, por isso, de fazer alguns comentários gerais sobre o que é a Filosofia.
A Filosofia é uma actividade: e uma forma de pensar acerca de certas questões. A sua característica mais marcante é o uso de argumentos lógicos. A actividade dos filósofos e, tipicamente, argumentativa: ou inventam argumentos, ou criticam os argumentos de outras pessoas, ou fazem as duas coisas. Os filósofos também analisam e clarificam conceitos. A palavra filosofia e, muitas vezes, usada num sentido muito mais lato do que este, para referir uma perspectiva geral da vida.

Filosofia no Ensino Secundário

Como celebrar o Dia da Filosofia?




Uma boa sugestão poderá ser ler algum texto de introdução à disciplina. Que este dia sirva para debater ideias e para reafirmar o verdadeiro valor da filosofia.Sharing Services

A UNESCO indicou em 2002 a celebração internacional do Dia da Filosofia na terceira quinta-feira do mês de Novembro. Neste ano de 2011 será celebrado no próximo dia 17 de Novembro. Com este dia a UNESCO pretende promover a importância da reflexão filosófica e destacar o valor da filosofia para as nossas vidas quotidianas.

A filosofia é uma actividade crítica. Ao caracterizar-se a filosofia como crítica não se está a dizer que ela é uma actividade de “bota-abaixo”. Pelo contrário, significa que se procura em filosofia examinar se as ideias que os sujeitos cognitivos veiculam são plausíveis ou não. Com a crítica a filosofia destrói dogmas cristalizados, mostra ignorância onde se supunha um saber indisputável, nada aceita sem uma cuidadosa análise, e obriga constantemente a repensar ideias para as sustentarmos com melhores razões ou argumentos.

Esta actividade encetou-se fundamentalmente com Sócrates, na Grécia Antiga, ao estimular cada cidadão a examinar cuidadosamente as suas crenças em diálogo crítico com os outros, de modo a haver uma maior aproximação da verdade. É também isto que a filosofia nos convida a fazer hoje: a examinar e a discutir criticamente as nossas crenças.
A filosofia critica nomeadamente as crenças mais básicas que o ser humano possui e que dirigem a sua vida. Porém, pode-se levantar aqui uma objecção: a ciência também investiga criticamente crenças básicas, então qual é a relevância da filosofia? É preciso atender a uma diferença peculiar: a ciência trata daqueles problemas que podem ser analisados empiricamente, enquanto que a filosofia trata daqueles outros problemas que não podem ser analisados empiricamente e para os quais não existem métodos formais de prova.

Por exemplo, se nos limitarmos a usar metodologias empíricas nunca conseguiremos responder a problemas como os seguintes: Deve a eutanásia ser legalizada? A sociedade deve estar organizada segundo uma concepção libertarista (como pretende o nosso Governo) ou segundo outras concepções como o liberalismo-igualitário ou o comunitarismo? Será que Deus existe? Estas questões dizem respeito à filosofia, pois só se podem tentar resolver tais problemas recorrendo fundamentalmente ao pensamento, à argumentação cuidadosa e à discussão crítica.

Portanto, a filosofia é essencial pelo seu valor instrumental de facultar ao ser humano um pensamento crítico, mas também pelo seu valor cognitivo intrínseco de procurar encontrar boas respostas para problemas que são fundamentais para os seres humanos e que são insusceptíveis de resolução empírica e formal.

Nada melhor do que percepcionar a filosofia em acção para se compreender melhor a natureza e a relevância desta área do conhecimento humano. Por isso, uma boa sugestão para celebrar o dia internacional da filosofia poderá ser ler algum texto de introdução à filosofia. Que este dia seja, como a UNESCO recomenda, um dia para debater ideias e para reafirmar o verdadeiro valor da filosofia. No entanto, espera-se que a filosofia não fique circunscrita apenas a um dia, mas que seja uma presença constante na vida humana.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

SLF - SOCIEDADE DOS LOBOS FILOSÓFICOS

Filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins, Campo Universitário de Arraias. É autor de “TCC não é um bicho-de-sete-cabeças”. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009 (no prelo)


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A Utopia de Tomás Morus: sonho ou contestação?

Wilson Correia[*]

Introdução
“En los utopistas ni todo es quimérico: algunos han sido reveladores, otros han actuado como estimulantes o fermento” (RIBOT).

Na vida cotidiana, quase sempre tomada pelas preocupações imediatas, é como que natural ver o homem não dar muito valor àquilo que escapa do âmbito dos problemas mais prementes. Uma dessas coisas é a utopia.
Por não se prestar à utilidade, às coisas postas à mão, o homem comum parece não ter clareza sobre a utopia. Por isso, muitas vezes, a utopia é entendida como sonho, algo do plano do quimérico, do irrealizável.
É até compreensível quando esse entendimento vem das pessoas não dadas à investigação científica e filosófica sobre o sentido das coisas. Porém, quando a mesma compreensão aparece na boca de alguém dado à busca e à produção do conhecimento, então é o caso de se perguntar: essa pessoa não está fazendo uma leitura apressada sobre o sentido da utopia?
Então, a primeira providência de quem deseja estudar a utopia de maneira rigorosa é não colocar todas as manifestações históricas no mesmo balaio. A República, de Platão, Cidade do Sol, de Campanella, Nova Atlântida, de Bacon, o pensamento rousseauísta, as idéias iluministas e as teses dos socialistas utópicos, por exemplo, são trabalhos do espírito humano que apresentam especificidade para com a qual é desejável, no mínimo, a atitude de respeito.
Na esteira da consideração anterior pode ser incluída a obra renascentista A Utopia, de Tomás Morus, sobre a qual podemos indagar: ela é a elaboração de um sonho ou é um trabalho de contestação da realidade social?
Para tentar averiguar se a utopia moreana pode ser qualificada de sonho, vou me valer de Freud, aquele que melhor investigou a atividade onírica. Para tentar perscrutar a utopia como contestação, vou me deter na análise da própria obra A Utopia, de Morus. Esse, aliás, é o objetivo do presente artigo.
A Utopia moreana
O termo utopia será empregado neste artigo na acepção de não-lugar-feliz (ou-topos, não lugar; u-topos, lugar feliz). É um termo que nomeia a felicidade ainda não concretizada pelo homem em nenhum lugar. Mas isso não autoriza o entendimento de que a utopia possa ser um surto de pensamentos absurdos, meramente alegóricos. Ao contrário, eles podem ser vistos como o corolário de um trabalho meticuloso do exercício de pensamento, o qual não dispensa a contribuição da imaginação, aquela que Einstein tanto privilegiou em seu trabalho de produção científica ao notar o valor da “invenção” (apud POPPER, 1975, p. 525).
A Utopia de Tomás Morus é, ao estilo platônico, um diálogo entre o próprio Morus e um inveterado navegador português, chamado Rafael Hitlodeu. Uma leitura acurada da obra moreana evidenciará a profundidade de pensamento que o diálogo revela, no qual Hitlodeu funciona como um alter ego do autor.
Na primeira parte da obra, Morus faz uma ampla análise sobre a sociedade inglesa do século XVI, a qual funciona como uma espécie de diagnóstico da sociedade inglesa de que fazia parte e que se encontrava combalida pelo desprazer e pela falta de liberdade.
Essa crítica moreana se estende a três dimensões da sociedade criticada, a saber: a composição social, o aspecto político e a dimensão econômica.
Do ponto de vista da composição social, a Inglaterra estava “fracionada” entre nobres, “artífices da corrupção”; clero, “os primeiros vagabundos deste mundo”; os soldados, que viviam na “ociosidade”; e os miseráveis, cujo destino era o de ser “enforcados com todas as formas de processo” (MORUS, 1990, p. 36, 49, 34 e 37). Nessa composição social, não havia a liberdade necessária à vida cidadã.
Na perspectiva da política, o que se via era a figura do príncipe absoluto, cujo axioma moral expressava o entendimento de que o soberano era “o proprietário universal e absoluto dos bens e pessoas de todos os súditos”, os quais dependiam “do bel-prazer do soberano” (MORUS, 1990, p. 58). Aí a liberdade tinha sido abortada na raiz. O soberano era o dono da vida e da morte das pessoas. A palavra dele era lei.
Na esfera econômica, o “direito de propriedade” prevalecia acima de tudo e de todos. Como decorrência da propriedade, assistia-se à busca do “lucro imediato”, a “carestia dos víveres” e o “luxo e as loucas despesas que este ocasiona” (MORUS, 1990, p. 65, 39, 30 e 39). Desse modo, a propriedade estava funcionando como fonte de todos os males pelos quais os ingleses coetâneos de Morus se viam passando.
Segundo Morus, “A causa principal da miséria pública é o número excessivo de nobres, ociosos zangões que vivem à custa do suor do trabalho de outrem, e que no cultivo das terras exploram os rendeiros até o osso, para aumentarem seus rendimentos” (MORUS, 1990, p. 34).
Em face dessa realidade, Morus propõe o que ele denomina de “caminho oblíquo” (MORUS, 1990, p. 62), segundo o qual a tarefa primeira da “filosofia oblíqua” não seria a de elaborar um programa político, mas dizer as mesmas coisas numa linguagem diferente, utópica.
No segundo livro de A Utopia, o objeto é o relato da vida feliz do “lugar-nenhum”, a ilha tornada o mais desejável dos oásis possíveis. A capital dessa ilha, era Amaurota, a “cidade dos sonhos”, das “nuvens”, o “castelo no ar”. O rio Anidro, sem água, banhava a capital. Alaopolitas, “cidadãos sem cidade”, habitavam-na. Os governantes eram os ademus, “aqueles que não tem povo”. Os vizinhos dos utopianos são os acórios, “homens sem país” (MORUS, 1990,passim).
Dessa maneira, ao descrever, em detalhes, a vida do povo utopiano, Morus faz a defesa da felicidade humana, resultante de um estilo de vida baseado na razão e na organização social fundada na cooperatividade. Morus tenta demonstrar com sua filosofia oblíqua que o desejo de felicidade pode qualificar uma “comunidade de vida”, no prazer e na liberdade. Esse desejo ele o expressa com a última frase de seu livro “Desejo-o mais do que espero” (MORUS, 1990, p. 169).
O sonho segundo Freud
Para Freud, “A interpretação dos sonhos é a estrada real para um conhecimento das atividades inconscientes da mente” (FREUD, 1969, p. 608). Foi com tal certeza que ele se dedicou ao estudo do sonho, chegando à conclusão de que o sonho realiza um desejo: “El sueño es la realización (disfrazada) de um deseo reprimido (FREUD, 1969, p. 340).
Dessa maneira, o primeiro passo para se compreender o trabalho onírico é ter clara a distinção entre conteúdo manifesto e conteúdo latente envolvido nessa atividade. O conteúdo manifesto é o que constitui o relato do sonho. O conteúdo latente é o que dá significado ao sonho. Esses conteúdos constituem o contexto do desejo.
“Para nosotros se interpola, em efecto, entre el contenido onírico y los resultados de nuestra observación un nuevo material psíquico: el contenido latente o ideas latentes del sueño que nuestro procedimiento analítico nos lleva a descubrir. De este contenido latente y no del manifesto es del que desarrollamos la solición del sueño” (FREUD, 1948, p. 398).
No contexto do sonho, quatro são as atividades que podem ser verificadas: a condensação, o deslocamento, a representação e a elaboração secundária.
A condensação refere-se à atividade que impede a nítida correspondência entre o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. Pelo fato de o conteúdo latenteser muito maior do que o conteúdo manifesto, o sonho pode representar inúmeros motivos ou desejos. Assim, uma gama variada de desejos pode ser condensada num só sonho: “La constituición de personas colectivas y mixtas es uno de los principales medios de que se sirve la condensación onírica” (FREUD, 1948, p. 406).
O deslocamento relaciona-se com o disfarce que o sonho realiza. Assim, a acentuação, o interesse ou a intensidade de uma representação torna-se susceptível de se deslocar para outras, ligadas a elas por uma cadeia associativa. “Resultado de este processo es que el contenido manifesto no se muestra igual al nódulo de las ideas latentes, no reproduciendo el sueño sino uma deformación del deseo onírico inconsciente” (FREUD, 1948, p. 413).
O processo de representação consiste na transformação dos pensamentos oníricos ou conteúdo latente para imagens do conteúdo manifesto. Por essa atividade, um sonho aproxima duas manifestações de desejos diferentes de maneira imagética. Para o indivíduo que sonha, essas imagens aparecem de forma confusa, e, ao relatar o sonho, ele não sabe se de fato é essa ou aquela imagem que apareceu:
“Así, pues, allí donde el sujetio del sueño introduce en el relato del mismo una habitacón, etc., no muestra o sueño tal alternativa, sino simplemente uma yuxtaposición, y lo que al introducir la alternativa queremos significar en nuestro relato del sueño es la vaguedad e imprecisión de un elemento del mismo. La regla de interpretación aplicable a este caso consiste em situar em un mismo plano los diversos miembros de la aparente alternativa y unirlos com la cunjunción copulativa ‘y’” (FREUD, 1948, p. 417).
A elaboração secundária é atividade que ordena, dá lógica e coerência ao conteúdo do sonho, de modo a apresentá-lo num todo aceitável e compreensível. Essa atividade escolhe, remodela e acrescenta algo ao conteúdo do sonho, sendo o efeito da censura. O próprio Freud conta que há cadeias de pensamentos divergentes, “radicalmente opuestas”, com “elementos iguales, pero contrários” (FREUD, 1948, p. 419) que se fazem representar no sonho manifesto.
Ao procurar demonstrar o trabalho complexo do sonho, Freud teve sempre presente que o sonho é a realização de um desejo, assinalando que o sonho “Es un acabado fenômeno psíquico, y precisamente una realización de deseos” (FREUD, 1949, p. 320). E o desejo está relacionado a essa dinâmica do trabalho onírico, fazendo parte da força inconsciente que busca realização.
Utopia moreana: sonho ou contestação da realidade?
O termo realidade pode significar: do francês realité, própria e especificamente, o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou dela independentes; do latim medieval realitasrealis, de res (coisa), termos que dizem respeito às coisas e fatos que se opõem ao fictício, ilusório, fantasmagórico ou aparente.
Quando se fala que a utopia de Morus é uma crítica ao real, ao real que não abrange a totalidade do existente, o termo está sendo empregado na primeira acepção do parágrafo anterior. Porém, quando se afirma que a utopia de Morus recria o real, o termo real é empregado na acepção inversa da primeira, pois se trata de um real que somente passa a existir como produto da mente humana e que dela depende. Assim, a utopia é o resultado desses dois tipos de trabalho mental, na medida em que parte do concreto percebido para criar algo que jamais fora percebido.
Em Freud, a realidade do sonho permanece fundada no inconsciente e no interior da mente. Ainda que condense, desloque, represente ou elabore secundariamente o conteúdo da vida vivida, ele perdura como atividade psíquica. Em Morus a realidade é sempre exterior à mente, a qual é criticada não pelo trabalho do inconsciente, mas segundo a vigilância da razão cônscia de si e do entorno natural e humano que toma como objeto de análise, a qual qualifica pela regras da lógica.
Em Morus a realidade exterior não depende da ação da mente humana. Em Freud, o trabalho onírico é que é o responsável pelo produto chamado de sonho, incluindo a latência e o relato consciente dele. Desse modo, o real utópico só existe e se justifica em função da realidade exterior. Assim, a contestação do real vivido pela elaboração do real utópico consiste na recriação do primeiro, em que este suplante aquele pela perfeição.
Em Freud o prazer está relacionado ao processo de diminuição de tensões (LAPLANCHE, 1967, p. 466/7), sendo um dos pólos do conflito psíquico que se estabelece no interior da mente entre idego e superego. Em Morus o prazer constitui um princípio moral, regulador da ação e equilibrador do agir externo, o qual, um produto epistêmico, deve ser consciente e racionalmente apreendido. Ademais, em Morus o desejo não é apenas impulso ou o querer o que não se tem, mas o motivador da ação rumo ao alcance da felicidade utópica mediante o trabalho racional.
Se em Freud a imaginação é tão-somente reprodutora, uma vez que o sonho não vai além do vivido, em Morus a imaginação é criadora, dado que re-cria estilo existencial e modelo societário que atendam ao anseio humano por realização e felicidade. Em Morus, pois, a razão trabalha de maneira clara e transparente, em vigília, não desprezando a interferência da racionalidade que dá conta, por completo, da realidade com que trabalha, critica e inventa.
Em Freud, o sonho é produto da pressão do conteúdo latente ou do desejo reprimido, prevalecendo em estado de sonolência. Em Morus, o trabalho da razão criadora, a utopia, é resultado do desejo que não se satisfaz com o que a realidade oferece, necessitando, pois, para permanecer realizável, da criação de uma outra realidade, sob a vigilância da consciência.
Desse modo, esta análise não nos permite tratar coisas tão díspares como se fossem a mesma coisa, a saber: o sonho, de acordo com Freud, e a utopia, segundo Morus. Assim, quando alguém diz que a utopia é um sonho, é preciso entender de que sonho ele está falando. Na perspectiva da psicanálise parece-nos que não pode ser.
Ao modo de conclusão
O exposto anteriormente nos garante no entendimento de que, na perspectiva da teoria dos sonhos de Freud, não é possível reafirmar a utopia moreana como sonho. Ela é uma manifestação da inteligibilidade humana, processo e produto do exercício do pensamento.
A utopia moreana, ainda que possa ser considerada um produto da razão que permite em paralelo o trabalho da faculdade da imaginação, constitui-se em um trabalho de crítica e contestação da realidade natural, humana, social, o qual não vai além daquilo que se acomoda na concretude de tudo o que pode ser percebido pelo ser humano.
O pensamento utópico realiza esse trabalho de crítica contestadora por meio da criação de um outro de si dessa realidade vivida, agora na forma de não-lugar, de felicidade ainda não experimentada, de modo de vida ainda não concretizado pelo homem e pela mulher. Aí a fórmula oblíqua da filosofia utopista moreana, que não pretendeu ser uma teoria da reforma social.
De outra maneira, e buscando a inspiração nas lições que aprendemos com a utopia de Morus, talvez possamos dizer que a utopia, em seu sentido lato, é o tipo de pensamento que rompe a desordem como ordem do real, hoje, amanhã e sempre, para propor o novo, razão pela qual a tese fundamental da mensagem utópica, que aponta para a possibilidade de recriação da vida e da realidade, possa ter em Morus uma relevante fonte inspiradora.
Como foi dito em outro lugar deste artigo, a utopia é a expressão da esperança. A esperança é o motivo da vida, a qual pode renovar-se e ser recriada incessantemente. Quem perder a esperança, ao que parece, bem que poderia encomendar a própria máxima lapidar.

sábado, 27 de setembro de 2014

Resenha Do Mês
(01/Set)AS RELAÇÕES HUMANAS
Sêneca escreveu As Relações Humanas em sua velhice quando já se tinha retirado da Corte para sua casa de campo. É uma série de cartas que ele dirige a Lucílio, não apenas um discípulo à distância, mas um amigo com quem ele partilha conhecimentos. A amizade é concebida como uma relação em que as parte se doam em envolvimento profundo, tal como ele diz inicialmente: "tu não poderás ler-me, não poderás lucrar com as minhas cartas se não souberes o que devemos ser um para o outro, se não compreenderes que essa troca de cartas deve também ser uma troca de almas". Assim, as cartas consagradas à amizade é um prelúdio que exorta o discípulo a cultivar com o mestre uma amizade virtuosa e inteira, para em seguida propiciar o desenvolvimento de temas mais aprofundados, aqueles que levarão o amigo à sabedoria. É assim que na seqüência vem os temas da eloqüência e dos livros, da atitude do sábio diante da morte, e, por último, a filosofia. Procura-se conduzir uma alma de qualidade à sabedoria, a discernir os verdadeiros valores, a viver segundo a Razão, a guiá-la para a contemplação da Natureza, portanto do Divino. O verdadeiro conhecimento é aquele que permite descobrir a Natureza e viver em harmonia com ela. Sobretudo, ele nos liberta do medo da morte. É missão do filósofo levar o homem a superar essa angústia. Meditações aprofundadas sobre a morte, sobre a amizade, sobre a filosofia, são encaminhadas a seu destinatário. O professor-amigo é uma chama viva, sempre à procura, dando de si ao outro para dar-se a si mesmo.

Nas relações humanas o perigo é coisa de todos os dias, escreve a Lucílio. Orientava o filósofo que precaver-se bem contra este perigo, estando sempre de olhos bem abertos: não há nenhum outro tão frequente, tão constante, tão enganador! A tempestade ameaça antes de rebentar, os edifícios estalam antes de cair por terra, o fumo anuncia o incêndio próximo: o mal causado pelo homem é súbito e disfarça-se com tanto mais cuidado quanto mais próximo está. Faz-se mal em confiar na aparência das pessoas que a nós nos dirigem: têm rosto humano, mas instintos de feras. Só que nestas apenas o ataque direto é perigoso; se nos passam adiante não voltam atrás à nossa procura. Aliás, orienta Sêneca, somente a necessidade as instiga a fazer mal; a fome ou o medo é que as forçam a lutar. O homem, esse, destrói o seu semelhante por prazer. Tu, contudo, pensando embora nos perigos que te podem vir do homem, pensa também nos teus deveres enquanto homem. Evita, por um lado, que te façam mal, evita, por outro, que faças tu mal a alguém. Alegra-te com a satisfação dos outros, comove-te com os seus dissabores, nunca te esqueças dos serviços que deves prestar, nem dos perigos a evitar. Que ganharás tu vivendo segundo esta norma? Se não evitas que te façam mal, pelo menos consegues que te não tomem por tolo. Acima de tudo, porém, refugia-te na filosofia: ela te protegerá no seu seio, neste templo sagrado viverás seguro ou, pelo menos, mais seguro.

A sabedoria de Sêneca não se limitava a teoria. Sua prática voltava-se para si mesmo, numa passagem ele pergunta: Que progresso já consegui? Comecei a ser amigo de mim mesmo. 

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

VALE TUDO OU VALE NADA ? ELEIÇÕES DEMOCRÁTICAS OU ELEIÇÕES DEMARCADAS ?



"Isso é um desmantelo, é uma desgraceira", diz o comerciante Antônio de Sá. "O povo aqui só vota em deputado e essas coisas por dinheiro." A aposentada Helena Sobreira concorda com outras palavras. "Nas eleições, eles compram voto mesmo. Não é tijolo, não é dentadura, não. Eles dão é dinheiro."
A compra de votos acontece em todas as regiões do Brasil. Foram 1.206 casos só na última eleição (2012). Em Alagoinha do Piauí, porém, esse crime eleitoral ganha contornos trágicos, afinal, a cidade é a recordista em analfabetismo do país. Antônio e Helena fazem parte dos 41,6% dos moradores de lá que não sabem ler nem escrever.     
Exemplo disso, o município já teve um prefeito cassado por captação ilícita de sufrágio, nome técnico para o voto vendido. A notícia parece até um causo sertanejo: em 2009, Clodoaldo de Moura (PT) foi afastado e, como vingança, levou a chave da prefeitura com ele. A presidente da Câmara, que ficou como interina, teve que despachar várias semanas da calçada.
"Qualquer agradinho, R$ 30, R$ 40 já ajeita o voto de um sujeito", resume Antônio a venda no varejo. O enredo da vida dele se confunde com a de outros "malucos véios sem nada", como ele define os iletrados. Infância na roça, escola distante e descaso das autoridades e da família são o início da história, que se completa com a ineficiência dos programas estatais de ensino para jovens e adultos.
Foi assim com o Mobral, promovido pelo regime militar (1964-1985). Foi assim com o Brasil Alfabetizado, lançado durante o governo Lula (2003-2010). 
Arte UOL
 
Nesse último, uma fraude colaborou para manter o nível de ensino tão baixo por lá. Como os educadores receberiam R$ 400 por turma formada, como havia muita resistência dos idosos analfabetos e como não havia fiscalização, vários grupos foram formados com pessoas que já eram alfabetizadas. Ou seja, ensinavam quem não precisava.  
Nos últimos 50 anos, o percentual de analfabetos no território nacional caiu de 39,8% para 9%. Em Alagoinha do Piaui, entretanto, o índice se manteve em um patamar da era em que o Brasil era um país rural.
Por sinal, a maioria da população do município está no campo (64%). Das 13 escolas, dez são na zona rural e são multisseriadas (alunos de várias séries com uma mesma professora e em uma mesma sala). Cinco ônibus e 150 bicicletas são oferecidos para o transporte dos estudantes. Mas muitos ainda viajam nas caçambas de caminhonetes para chegar aos colégios, no mais típico estilo pau-de-arara, em meio aos cajueiros que sofrem com a seca e empobrecem ainda mais a área.
"Papagaio velho não aprende a falar. Eu passo o dia roçando embaixo do sol. Chega a noite, eu quero é descansar. Não consigo estudar", afirma o agricultor Adão Paz. Ele diz que na hora de votar não tem dificuldade. "Número é mais fácil que letra. Pego o santinho e decoro. Quando vejo a foto do cabra, aperto o botão verdinho e pronto."
A destreza diante da urna eleitoral não esconde a mágoa por sua condição. "Quem não sabe ler é cego. É triste olhar um papel e não ver nada. Na época da besteira, meus pais não me levaram para a escola. Agora, sou assim e não mudo mais", desabafa.
No final da tarde, muitos dos analfabetos vão para a praça central de Alagoinha para assistir TV. Abre-se uma portinhola de madeira no alto de um poste de alvenaria. Dentro está o aparelho de tubo que só sintoniza a TV Record. Distraídos entre conversas, mal prestam atenção ao horário eleitoral na tela. Afinal, por lá as palavras não têm forma: elas só fazem barulho.
Segundo o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), estão no Piauí as três cidades com maior percentual de analfabetos acima dos 10 anos de idade. Além de Alagoinha (41,6%), são elas Caxingó (40,8%) e Caraúbas (40,6%). O Estado, porém, está em segundo nesse ranking negativo: Alagoas supera com 24,3% de iletrados contra 22,9% do Piauí.
Assim como em Alagoinha, em Caxingó um prefeito foi afastado por compra de voto. A situação é tão crítica no Estado que há acusações atualmente contra os favoritos ao cargo de governador, Wellington Dias (PT), e ao de senador, Wilson Martins (PSB). Uma operação da Polícia Federal, Civil e Militar vai patrulhar locais de votação nos 224 municípios do Piauí para tentar bloquear o habitual mercado de votos.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

QUARTA-FEIRA, 3 DE SETEMBRO DE 2014

As Eleições e a Filosofia








"É Preciso Mudar, para que Tudo Continue o Mesmo"
Ou
As Eleições e a Filosofia


Maurício Filho, 03/09/2014

 
As eleições presidenciais brasileiras de 2014 apresentam um desafio ao eleitor. Nem tanto pelo problema de escolher em quem votar – algo que pode ser facilmente decidido com a ajuda de um bom manual de medicina legal – mas sim pela dificuldade em compreender o que os slogans de cada candidato estão querendo nos dizer.
            A presidente Dilma, por exemplo, parece tentar nos convencer de que "para que as coisas continuem mudando, é preciso que tudo permaneça igual". Marina Silva, por seu segundo turno, nos assevera: "É necessário mudar, para que tudo continue o mesmo". Já Aécio Neves, o candidato liberal, não hesita em garantir: "Nós manteremos o bolsa família".
            Como assim? Será que os candidatos nos tomam por imbecis?
       Claro que não. Essa desconfiança maldosa nasce do desconhecimento quanto aos debates intelectuais subjacentes à atual disputa. Apenas com os instrumentos analíticos da filosofia o eleitor pode se situar nesse sofisticado embate de ideias.
            A questão, por exemplo, sobre permanência ou mudança é um problema filosófico clássico, abordado já pelos pré-socráticos. Quando a presidente Dilma nos diz que "para que as coisas continuem mudando, é preciso que tudo permaneça igual", ela claramente está expressando uma postura filosófica inspirada no pensamento de Heráclito, para quem nada é constante – tudo se transforma a todo momento. A lei essencial do universo é a lei da mudança, e apenas nossa capacidade imperfeita de conhecimento pode nos levar à ilusão de que as coisas permaneçam imutáveis.
            Segundo Heráclito, uma presidente nunca entra duas vezes no mesmo rio. Isso não apenas porque a água está em constante fluxo, mas também porque a própria presidente está se transformando a todo instante. Digamos que ela realmente decida banhar-se no ribeirão, enquanto os eleitores vão às urnas decidir o futuro do Brasil. Como poderíamos saber como ela seria após refrescar-se? Manteria ela as mesmas alianças políticas, as mesmas práticas de gestão, as mesmas estratégias econômicas do mandato anterior? Como vamos adivinhar! É um erro, do ponto de vista heraclitiano, achar que os quatro anos passados são um indício do que vem por aí. A própria trajetória do PT é a prova cabal disso (ou já esquecemos que o partido se reinventou, arrumando tantos novos bons amigos?).
            A proposição da candidata Marina Silva – "É necessário mudar, para que tudo continue o mesmo" – parece expressar o mesmo conteúdo da afirmação da rival. Do ponto de vista filosófico, porém, a candidata representa o extremo oposto, ou seja, é adepta da corrente intelectual de Parmênides. Segundo esse pensador, o que existe é necessário e imutável. As mudanças que nos indicam os sentidos são, na verdade, aparências de uma realidade que é estática, eterna – não é criada e não pode ter um fim. Sendo assim, quando Marina propõe sua "Nova Política", que, mesmo nova, mantém muito do que vem sendo feito, ela humildemente reconhece a impossibilidade metafísica da transformação.
            O que Marina talvez não tenha ainda se dado conta é que o fundamento intelectual de sua campanha pode lhe ser desfavorável – ao menos segundo o paradoxo expresso pelo discípulo de Parmênides, Zenão de Eleia. Numa corrida entre Marina e Dilma em direção ao Palácio do Planalto, mesmo que o aumento da popularidade de Marina seja mais rápido que o da atual presidente, ela jamais poderá alcançar sua rival. Isso porque, quando Marina tiver alcançado um determinado ponto A no caminho, Dilma já terá se locomovido, mesmo que lentamente, para um ponto B. Quando Marina, então, tiver chegado ao ponto B, Dilma terá se locomovido ao ponto C, e isso sucessivamente, ad infinitum.
            Enquanto Marina e Dilma correm pela Esplanada, debrucemo-nos sobre o pensamento daquele que possivelmente representa o mais indecifrável dos candidatos, Aécio Neves. Herdeiro histórico da linha neoliberal, Aécio vê-se diante do formidável desafio de mostrar ao povo brasileiro que ele não é aquilo que ele é.
            A ferramenta intelectual usada pelo candidato mineiro para superar esse desafio é o princípio aristotélico da presidentidade: o que é, é, o que não é, não é, e vice-versa. Segundo ele, as divergências em termos de política econômica não precisam amedrontar o eleitor pobre – o que se beneficia com o bolsa-família – umas vez que todos os candidatos, no fundo, são a única e mesma pessoa, quero dizer, o Lula.
            Que Aécio também seja o Lula é algo que se entende quando se considera a distinção kantiana entre fenômeno ou coisa-em-si. O fenômeno da política PSDBista – o enxugamento do Estado, as privatizações, a diminuição dos gastos públicos – são apenas a manifestação sensível no mundo de um númeno ou coisa-em-si incognoscível. A manifestação externa dessa política, portanto, não nos diz nada sobre sua verdadeira essência, ou seja, sobre a natureza dessa política quando considerada sem a participação do sujeito conhecedor – o eleitor. Este, por sinal, se dá bem até quando se dá mal, pelo menos segundo os princípios dessa filosofia derivada de Leibniz. Viveremos no melhor dos mundos possíveis, desde que as empresas tenham plena liberdade em sua destrambelhada busca pelo supremo bem. (Aécio, porém, precisa precaver-se contra seu próprio aristotelismo, uma vez que o princípio da presidentidade desemboca necessariamente no do terceiro excluído.)
Algumas conclusões se podem depreender do que foi discutido até o momento:
1) Está tudo igual.
2) Está tudo diferente.
3) É preciso mudar.
4) É preciso não mudar.
As quatro afirmações na verdade convergem, já que a política brasileira contemporânea coaduna-se bem ao principio docoincidentia oppositorum (coincidência dos opostos) do místico renascentista Nicolau de Cusa. Na mais alta instância – ou seja, em Brasília – as contradições se anulam. E isso não porque quando nós consideramos o Ser à luz do Todo, a divisibilidade perde o sentido, mas sim em razão do princípio neoplatônico subjacente à política brasileira de hoje: o da governabilidade. Os opostos precisam se anular porque é preciso passar os projetos de lei do Governo.
A governabilidade se confunde com a ideia de uno elaborada por Plotino e similarmente ela se se manifesta por meio de uma trindade. Num dos seus polos reside a figura mítica de FHC, ou Plano Real – um conceito abstrato, quase um pressuposto lógico do ser, expresso por um mínimo de estabilidade econômica e de garantias ao setor privado. No segundo polo está Lula, ou Bolsa Família – o demiurgo criador que encarna, por meio da figura cosmogônica de um benevolente e barbudo pai, a responsabilidade social do Estado. No terceiro polo está o PMDB, ou o que na teologia cristã seria identificada como o Espírito Santo – o que tudo perpassa, mas que, na prática, não parece fazer muita diferença. Talvez seja correto dizer que, num certo sentido, nossas três alternativas políticas – Dilma, Marina e Aécio – são hipóstases do uno da governabilidade, no sentido de que os três expressam a radicalidade do mais ou menos.
            Não nos iludamos, porém, com a postura cínica de que tanto faz como tanto fez. É claro que o resultado dessas eleições fará muita diferença para nosso país – e eu mesmo já escolhi em quem irei votar (ou, melhor dizendo, já escolhi em quem não irei votar). A questão é que estamos diante de um duelo de personalidades, e não de concepções. Desde um ponto de vista intelectual, acho notório perceber que nosso debate político parece ter alcançado o ápice do percurso do Espírito em direção à verdadeira Ciência e ao Absoluto, como descrito por Hegel na Fenomenologia do Espírito. Pois que mais poderia explicar tamanho marasmo, e tamanha incapacidade de brotarem ideias politicas verdadeiramente novas? Chegamos ao ápice da filosofia política, no sentido de que ela, aqui, se esgotou.
            Nessa campanha, as ideias importam quase tão pouco quanto os fatos. Por isso tanta gritaria.   

sábado, 13 de setembro de 2014

Sócrates - O mestre em busca da verdade

PARA O PENSADOR GREGO, SÓ VOLTANDO-SE PARA SEU INTERIOR O HOMEM CHEGA À SABEDORIA E SE REALIZA COMO PESSOA


Foto: Araldo de Luca/Corbis
Foto: Araldo de Luca/Corbis
O pensamento do filósofo grego Sócrates (469-399 a.C.) marca uma reviravolta na história humana. Até então, a filosofia procurava explicar o mundo baseada na observação das forças da natureza. Com Sócrates, o ser humano voltou-se para si mesmo. Como diria mais tarde o pensador romano Cícero, coube ao grego "trazer a filosofia do céu para a terra" e concentrá-la no homem e em sua alma (em grego, a psique). A preocupação de Sócrates era levar as pessoas, por meio do autoconhecimento, à sabedoria e à prática do bem. Nessa empreitada de colocar a filosofia a serviço da formação do ser humano, Sócrates não estava sozinho. Pensadores sofistas, os educadores profissionais da época, igualmente se voltavam para o homem, mas com um objetivo mais imediato: formar as elites dirigentes. Isso significava transmitir aos jovens não o valor e o método da investigação, mas um saber enciclopédico, além de desenvolver sua eloqüência, que era a principal habilidade esperada de um político. Sócrates concebia o homem como um composto de dois princípios, alma (ou espírito) e corpo. De seu pensamento surgiram duas vertentes da filosofia que, em linhas gerais, podem ser consideradas como as grandes tendências do pensamento ocidental. Uma é a idealista, que partiu de Platão (427-347 a.C.), seguidor de Sócrates. Ao distinguir o mundo concreto do mundo das idéias, deu a estas status de realidade; e a outra é a realista, partindo de Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão que submeteu as idéias, às quais se chega pelo espírito, ao mundo real.
Biografia
Sócrates nasceu em Atenas por volta de 469 a.C. Adquiriu a cultura tradicional dos jovens atenienses, aprendendo música, ginástica e gramática. Lutou nas guerras contra Esparta (432 a.C.) e Tebas (424 a.C.). Durante o apogeu de Atenas, onde se instalou a primeira democracia da história, conviveu com intelectuais, artistas, aristocratas e políticos. Convenceu-se de sua missão de mestre por volta dos 38 anos, depois que seu amigo Querofonte, em visita ao templo de Apolo, em Delfos, ouviu do oráculo que Sócrates era "o mais sábio dos homens". Deduzindo que sua sabedoria só podia ser resultado da percepção da própria ignorância, passou a dialogar com as pessoas que se dispusessem a procurar a verdade e o bem. Em meio ao desmoronamento do império ateniense e à guerra civil interna, quando já era septuagenário, Sócrates foi acusado de desrespeitar os deuses do Estado e de corromper os jovens. Julgado e condenado à morte por envenenamento, ele se recusou a fugir ou a renegar suas convicções para salvar a vida. Ingeriu cicuta e morreu rodeado por seus amigos, em 399 a.C.
Ensino pelo diálogo Nas palavras atribuídas a Sócrates por Platão na obra Apologia de Sócrates, o filósofo ateniense considerava sua missão "andar por aí (nas ruas, praças e ginásios, que eram as escolas atenienses de atletismo), persuadindo jovens e velhos a não se preocuparem tanto, nem em primeiro lugar, com o corpo ou com a fortuna, mas antes com a perfeição da alma". Defensor do diálogo como método de educação, Sócrates considerava muito importante o contato direto com os interlocutores – o que é uma das possíveis razões para o fato de não ter deixado nenhum texto escrito. Suas idéias foram recolhidas principalmente por Platão, que as sistematizou, e por outros filósofos que conviveram com ele. Sócrates se fazia acompanhar freqüentemente por jovens, alguns pertencentes às mais ilustres e ricas famílias de Atenas. Para Sócrates, ninguém adquire a capacidade de conduzir-se, e muito menos de conduzir os demais, se não possuir a capacidade de autodomínio. Depois dele, a noção de controle pessoal se transformou em um tema central da ética e da filosofia moral. Também se formou aí o conceito de liberdade interior: livre é o homem que não se deixa escravizar pelos próprios apetites e segue os princípios que, por intermédio da educação, afloram de seu interior.
O Nascimento das idéias, segundo o filósofo
Ilustração do século 19: Sócrates como mestre do guerreiro Alcibíades. Foto: Bettmann/Corbis
Ilustração do século 19: Sócrates como mestre do guerreiro Alcibíades. Foto: Bettmann/Corbis
Sócrates comparava sua função com a profissão de sua mãe, parteira – que não dá à luz a criança, apenas auxilia a parturiente. "O diálogo socrático tinha dois momentos", diz Carlos Roberto Jamil Cury, professor aposentado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O primeiro corresponderia às "dores do parto", momento em que o filósofo, partindo da premissa de que nada sabia, levava o interlocutor a apresentar suas opiniões. Em seguida, fazia-o perceber as próprias contradições ou ignorância para que procedesse a uma depuração intelectual. Mas só a depuração não levava à verdade – chegar a ela constituía a segunda parte do processo. Aí, ocorria o "parto das idéias" (expresso pela palavra maiêutica), momento de reconstrução do conceito, em que o próprio interlocutor ia "polindo" as noções até chegar ao conceito verdadeiro por aproximações sucessivas. O processo de formar o indivíduo para ser cidadão e sábio devia começar pela educação do corpo, que permite controlar o físico. Já para a educação do espírito, Sócrates colocava em segundo plano os estudos científicos, por considerar que se baseavam em princípios mutáveis. Inspirado no aforismo "conhece-te a ti mesmo", do templo de Delfos, julgava mais importantes os princípios universais, porque seriam eles que conduziriam à investigação das coisas humanas.
Opondo-se ao relativismo de muitos sofistas, para os quais a verdade e a prática da virtude dependiam de circunstâncias, Sócrates valorizava acima de tudo a verdade e as virtudes – fossem elas individuais, como a coragem e a temperança, ou sociais, como a cooperação e a amizade. O pensador afirmava, no entanto, que só o conhecimento (ou seja, o saber, e não simples informações isoladas) conduz à prática da virtude em si mesma, que tem caráter uno e indivisível. Segundo Sócrates, só age erradamente quem desconhece a verdade e, por extensão, o bem. A busca do saber é o caminho para a perfeição humana, dizia, introduzindo na história do pensamento a discussão sobre a finalidade da vida. O despertar do espíritoO papel do educador é, então, o de ajudar o discípulo a caminhar nesse sentido, despertando sua cooperação para que ele consiga por si próprio "iluminar" sua inteligência e sua consciência. Assim, o verdadeiro mestre não é um provedor de conhecimentos, mas alguém que desperta os espíritos. Ele deve, segundo Sócrates, admitir a reciprocidade ao exercer sua função iluminadora, permitindo que os alunos contestem seus argumentos da mesma forma que contesta os argumentos dos alunos. Para o filósofo, só a troca de idéias dá liberdade ao pensamento e a sua expressão – condições imprescindíveis para o aperfeiçoamento do ser humano.
A capital da democracia e do saber
O Partenon de Atenas: marco do apogeu da cultura clássica grega. Foto: Roger Wood/Corbis
O Partenon de Atenas: marco do apogeu da cultura clássica grega. Foto: Roger Wood/Corbis
Sob o governo de Péricles (499-429 a.C.), a cidade-estado de Atenas, vitoriosa na guerra contra os persas e enriquecida pelo comércio marítimo, tornou-se o centro cultural do mundo grego, para o qual convergiam os talentos de toda parte. Fídias, o arquiteto e escultor que dirigiu as obras do Partenon, o maior templo da Acrópole, os dramaturgos Sófocles, Ésquilo, Eurípedes e Aristófanes e o orador Demóstenes são nomes dessa época. O regime democrático ateniense – restrito aos cidadãos livres, deixando de fora estrangeiros e escravos – foi fortalecido por reformas que limitaram os poderes da burguesia rica e ampliaram os da assembléia e do júri popular. A educação artística do povo foi estimulada pela exibição de obras de arte em locais públicos e pelas representações teatrais.
Para pensar
Ao eleger o diálogo como método de investigação, Sócrates foi o primeiro filósofo a se preocupar não só com a verdade mas com o modo como se pode chegar a ela. Eis por que ele é considerado por muitos o modelo clássico de professor. Quando você prepara suas aulas, costuma levar em conta a necessidade de ajudar seus alunos a desenvolver procedimentos para que possam pensar por si mesmos?
Quer saber mais?
História da Educação na Antigüidade, Henri-Irénée Marrou, 656 págs., Ed. EPU, tel. (11) 3168-6077, 135 reais Paidéia - A Formação do Homem Grego, Werner Jaeger, 1413 págs., Ed. Martins Fontes, tel. (11) 3241-3677, 101,40 reais Sócrates, coleção Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, tel. (11) 3039-0900 (edição esgotada) Sócrates, Rodolfo Mondolfo, Ed. Mestre Jou (edição esgotada)